O Império em Ruínas.



Tinha sete anos quando ganhou o cachorro. Partiu para dar banho no bichinho.
- Ele ainda não toma banho! É muito novinho! Disse a mãe.
Será que está com fome?
- Ainda não! Tem que esperar a hora do jantar, igual a você!
Seus dedos eram violentamente mastigados pelo novo amigo, enquanto o pai, preocupadíssimo, desfiava a ladainha sobre higiene, vacinas, rações e passeio periódicos.  
- Você será o meu cachorro - ele disse orgulhoso e confiante. O cão latiu. 
E saíram os dois para o passeio.
O animalzinho queria deter-se em muitos cheiros que encontrava no caminho, mas era arrastado para a sua primeira exibição pública. Todos tiveram inveja de seu cachorrinho. E ele se sentiu orgulhoso por ter inspirado novamente a confiança dos pais.
No verão passado, a mãe lhe deu uma tartaruguinha de presente, a Edvânia, cujo nome era uma homenagem a avó paterna. Tudo ia muito bem até o dia em que a tartaruga caiu da janela. Nove andares de queda, não havia tartaruga que resistisse. Mas Edvânia sobreviveu. Foi doada a um primo mais velho, sob o juramento materno de que ele nunca mais ia ter um bichinho. Um ano depois, as coisas mudaram. Ele já era um rapaz, a mãe mesmo é que dizia. E então recebeu a grande responsabilidade de cuidar do cachorro.
O passeio no parque seguia animado, com grandes corridas e gritos, até que chegou a menina de vestido vermelho. Lucília, o nome dela. Ele soube quando as outras crianças gritaram:
-  Lucília, vem ver o cachorro!
Lucília veio andando toda arrumadinha no meio da tarde. E aquela era a segunda vez que ele se apaixonava num único dia.
- Esse cachorro é seu?
Sim. Era o cachorro dele. Ele era o proprietário.
Lúcilia olhou os dois com desdém e foi correr do outro lado.
Se algum adulto estivesse supervisionando as crianças no parque, talvez tivesse notado que Lucília havia ficado enciumada porque o dono do cachorro era um menino pequeno e não ela, que já era mais velha. Por isso havia refreado o impulso de apertar a carne macia do animalzinho. Mas ele, que não sabia disso, perdeu-se pela primeira vez nos mistérios da alma feminina.  O que é ela queria? O que podia ser melhor que a vida de um cãozinho?
E tão entretido estava nesses pensamentos que não notou o momento que o cachorrinho foi levado por umas crianças.
Ele atravessou o parque seguindo a menina, ainda sem saber que tantas vezes seguiria mulheres por outras alamedas, e encontrou-a sentada num montinho de areia, fazendo bolinhos. Não podia oferecer-lhe outra coisa além de incertezas, mentiras e falsas esperanças. Ainda assim queria brincar com ela. Ela, que o havia escolhido.
- Posso brincar com você?
E o amor durou a tarde toda naquele montinho de areia, até a hora em que as mães chamaram para o banho. 
- A gente vai se ver amanhã?
E ela respondeu como se desde o começo esperasse a pergunta e já estivesse saboreando a resposta:
- Não.
Durante o jantar o pai lhe perguntou pelo presente. Ele ainda lembrava a Lucília de olhos caninos, a brincadeira de mordidinhas que eles fizeram de tarde. Pelo cachorro, não podia responder. Mas o pai exigia o cachorro.
De noite o parque já não era aquele que brilhava sob o sol. Já não havia nenhum sinal de Afrânio (esse era o nome do cachorro, uma homenagem ao avô materno). Enquanto caminhavam de volta pra casa, solitários ainda que estando lado a lado, o pai notou o desolamento do menino, teve pena de brigar.  O maior castigo dele era mesmo aquele, andar pela noite lamentando as suas perdas, a impossibilidade de recuperar o que de fato nunca fora seu: o amor da menina, a vida de um cachorro.

2 comentários:

  1. Você sabe escrever daquela maneira que, se ler a primeira palavra, se embala texto afora sem querer largar. E nessas horas eu fico com vontade que cada post seu seja um livro.

    Beijos.

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  2. O cachorro da minha infância

    me ensinou muito mais do que eu poderia ensiná-lo.

    Aprendi, com ele, que lealdade e amor não têm preço;

    que é possível estar só no meio de um mundo de gente;

    e que nunca se é só se há um amigo do lado...




    Aprendi que não é loucura conversar sozinho,

    pois haverá quem sempre entenda com um olhar

    o sentimento de quem não consegue expressar

    em palavras o que se carrega dentro do peito

    como um segredo que se tem medo de compartilhar...




    Aprendi que não é preciso morar junto

    para ter a sensação que o outro faz parte da sua vida;

    que conviver é a arte do respeito à diferença

    e que a alegria do reencontro é a retomada

    de uma estrada que nunca foi interrompida...




    Aprendi que uma boa caminhada ajuda

    a colocar muitas idéias no seu devido lugar...

    que hora de carinho é hora somente de carinho,

    sem me preocupar com quem está em volta...

    e hora de brigar é hora de rosnar e colocar os dentes para fora...




    Aprendi que companheirismo significou muito mais

    do que comer o mesmo pão junto...

    Foi brincar de dois amigos contra o mundo,

    dois heróis contra o universo,

    dois corações irmanados sem filtros da razão.




    Tudo isso eu poderia aprender sozinho

    ou com qualquer outro ser humano,

    lendo, amando ou simplesmente vivendo...

    mas, na verdade, foi mesmo convivendo

    com quem, para mim, era muito mais do que gente:

    O cachorro da minha infância...

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