Eles
já estavam há setenta dias no mar. A Princesa Coroada singrava os mares grávida
de mil quatrocentos e vinte tripulantes de várias nacionalidades que partiram da
África do Sul rumo às Ilhas Gregas, mas que tiveram, por força da pandemia de
Covid-19, que alterar a rota para o Brasil.
Presos
na embarcação, os tripulantes já não eram mais companheiros de viagem. Se
tornaram irmãos. E, como irmãos, tinham que se suportar. As brigas eram inúmeras
e por qualquer motivo. O stress da situação, o confinamento, a incerteza, o
medo faziam com que palavrões fossem berrados a todo momento, em muitos idiomas.
Emílio
e Sara estavam na cabine sessenta e seis e há muitos dias não saiam. Foi a Armênia que, num
momento de tédio extremo, falou em inglês um pouco alto, de forma que várias
pessoas no convés da piscina ouviram: onde está aquele casal simpático, os
brasileiros?
-
Quais brasileiros? Perguntou uma espanhola.
-
Emílio e Sara.
Mas
Emílio e Sara já dormiam, de mãos dadas, na cabine.
Dias
antes, Emílio conversou seriamente com Sara, sobre a sua decisão. Claro que
quando saíram do Brasil, o plano não era esse. Mas quando saíram do Brasil, o
plano também não era errar sem porto, o plano não era uma pandemia. O fato é que
agora estavam os dois velhos, num barco, sem ter onde aportar. Estavam os dois
velhos, apaixonados, no meio do mar. Estavam os dois velhos, aterrorizados, no
meio de um caos. No meio de um sonho de conhecer as ilhas gregas.
Emílio
disse para Sara que queria navegar outros mares mais misteriosos.
-
São oitenta e seis anos, Sara, de busca.
Emílio
se calou e olhou o mar. E agarrou a mão da esposa. O casamento que o ajudou a
atravessar os anos, as tempestades dos anos. Emílio era um barco singrando o tempo.
-
E agora chega. Estou cansado.
Sara
sentiu que o desespero ia toma-la. Ela queria se atirar nos braços dele. Mas
ele abriu um sorriso tão brilhante, que a desarmou.
-
Eu vou contigo.
-
Não...
Emílio
tentou argumentar, mas não havia o que ser dito. Viver é poder decidir.
O
encarregado, depois de pedir licença muitas vezes, resolveu abrir a porta da
cabine 66. Ao ver a cena, dirigiu-se ao comandante e explicou a situação. O
comandante disse, apenas:
-
Ainda mais essa.
Ao
descer para a cabine, o homem não podia deixar de pensar nas questões práticas.
Mas Emílio havia deixado um bilhete, junto com os passaportes, com
recomendações claras:
-
Por favor, nos lancem ao azul.
Isso
tranquilizou o comandante. Mas em seguida ele ficou por intranquilo por ter
ficado tão tranquilo diante dos corpos e começou a chorar.
Foi
nesse exato momento que um viajante entrou na cabine e viu a cena. A notícia se
espalhou como cinzas ao vento. Em pouco tempo, todos vieram, se amontoaram. Estavam
Emílio Francisco Ribas e Sara Santos de Alencar, vestidos com suas melhores
roupas, ele com terno branco que ia passar o réveillon nas ilhas gregas, ela
com o vestido rosa guardado para a mesma ocasião, abraçados na cama. Na mão dela
havia uma flor.
O
silêncio no quarto só era interrompido por algumas interjeições de espanto e
pesar, até que um francês despejou algumas palavras:
-
Isso é que é amor.
A
Armênia protestou, veemente:
-
Isso não tem nada a ver com amor!
-
É falta de fé. Disse um italiano.
-
Amor não tem nada a ver com isso, prosseguiu a Armênia. Ora, veja só. Eu tenho
setenta e seis anos, imagine se eu vou...
E
se calou diante do horror do pensamento.
A
partir daí, sugiram muitos debates na embarcação. O certo, o errado, o fim, os
inícios, tudo colocado em xeque. Enquanto vagavam pelo mar esperando algum
porto que os acolhesse, todos os passageiros colocaram a própria vida em
retrospectiva. Parar ou seguir? Essa parecia ser a única questão filosófica
relevante, lembrou um francês. A questão da felicidade também foi amplamente
debatida.
Quando
avistaram a costa brasileira, um russo lembrou os versos de Maiakovski:
-
Dizem que em algum lugar, parece que no Brasil, existe um homem feliz.
-
Emílio e Sara eram brasileiros, lembrou alguém.
-
Idiotas. A Armênia ainda não os tinha perdoado.
Mas
todos os outros passageiros no convés sorriram um sorriso de fim de tarde.
Atualmente,
a Princesa Coroada, transatlântico com mil quatrocentos e vinte passageiros
menos dois, se encontra ancorada na cidade de Salvador, na Bahia de Todos os Santos.
A maioria dos passageiros gosta desse nome. Eles ainda não têm autorização para
desembarcar, mas as brigas cessaram.