Osiris

O arranha-céu ia se chamar Osiris, em homenagem ao antigo deus egípcio, responsável pela força do solo.

Apesar da homenagem ao Egito antigo, a verdade é que a pior coisa que pode acontecer a uma construtora é se deparar com um sítio arqueológico. Foi justamente o que aconteceu com Justino. No momento das escavações, um operário se abaixou e puxou alguma coisa da terra.

- Que diabo é isso?

O engenheiro ouviu, pediu pra ver. Ficou em dúvida.

- Isso é um artefato, disse indeciso.

O pedaço de cerâmica circulou de mãos em mãos, até que um pedreiro sentenciou, firme:

- É um cachimbo.

O óbvio só se torna óbvio depois que alguém descortina a obviedade.

- É óbvio, disse o engenheiro.

E tocaram a chamar o Iphan, para que tivessem uma pista de como o cachimbo fora parar ali. E fizeram tudo isso sem avisar ao Justino, dono da construtora. Quando Justino soube do imbróglio, o técnico do Iphan já havia diagnosticado que o cachimbo era mesmo um cachimbo, e que, por suas formas e cores, devia ter cerca de onze mil anos.

- É um milagre.

- É uma desgraça.

E enquanto o técnico do Iphan (e o engenheiro) choravam de emoção diante da antiguidade da peça, Justino chorava pensando no prejuízo de interromper a obra.

Paciência, Justino, o mundo não é justo.

Osiris, o deus egípcio, talvez não quisesse que naquele solo se erguesse, em sua homenagem, um edifício. Pelo contrário, queria que as escavações (agora mais cuidadosas, feitas por arqueólogos) revelassem outros artefatos e um crânio humano, sinais de que ali, há muitos anos, viveram pessoas. E porque ali havia vestígios do passado, o terreno deveria ser respeitado. A obra foi embargada por tempo indeterminado. Todas as noites, Justino se queixava para a sua família, na hora do jantar:

- Mas e o meu arranha-céu?

Ao que sua filha, adolescente, respondia enfadada:

- Ai, pai, arranha-céu, que coisa mais antiga.

 


30 de abril

No início do ano, era fevereiro, eu estava numa fila num self-service e a mulher a meu lado virou pra mim:

- Eu posso te dizer uma coisa?

-Pra mim?

- Sim.

- Claro.

- Em maio, estaremos mortos.

- Oi?

- Eu e você. Em maio. Mortos.

- Não entendi.

-A pandemia vai nos atingir em março, em maio, eu e você...

- Já sei!

- Então, não coma a salada, como a lasanha. A lasanha é mais gostosa.


Saudade

Hoje me falam as palavras, me faltam as escadas, me falham as estradas. Hoje nada faz sentido. Hoje seus medos me tocam como dedos, me colam os lábios. Tenho uma cidade atravessada na garganta. Tenho muitas árvores. Tenho saudades da minha terra, mas não quero nada do que me enterra. Desde que parti, sigo partida. Hoje é sábado. E amanhã é dormindo. Hoje me traem as lembranças, me travam as mentiras, me enlaçam, me enlevam, me lamento.  Hoje é o amargo, hoje é sábado, mas amanhã é sorrindo.  


Séculos


Se você é ator, ou atriz e esse texto te fala ao coração, ligue uma câmera, na frente de um espelho e diga: que saudade do palco. Porque se você é ator, ou atriz, deve estar com saudade do palco. O palco é o centro da vida. É onde ela acontece com mais força. E a saudade do palco é terrível, eu mesma já senti porque já fui atriz, mas ela morreu, a saudade, como morre o que a gente não atenta. Agora você diz: eu sou a melhor parte de uma sociedade. Posso dizer isso sem parecer arrogante porque essas palavras não são minhas, são de uma dramaturga que as escreveu. Mas sou eu que decido como vou dizer. E isso é muito.  E o meu trabalho é um dos mais importantes porque sou eu que represento como estamos vivendo. E isso é muito. Mas agora que não há palco, eu ligo uma câmera diante de um espelho (o espelho representa o público) e digo: o teatro está aqui porque o teatro é o meu corpo. Posso dizer isso sem parecer arrogante porque essas palavras sequer são minhas, são de uma dramaturga que as escreveu porque está precisando muito de teatro. E agora você pode dizer: se sou ator, ou atriz, eu represento a beleza porque o meu corpo está a serviço da arte. E posso dizer isso sem parecer arrogante porque todas palavras do mundo são minhas e eu as pronuncio de determinada forma que as lanço através dos séculos.  

 


Apagão


(Armando está lendo, Helena entra afobada)

- Armando, por quê a tigela de comida do gato estava do lado da planta?

- Não sei, Helena. Provavelmente, eu aguei o gato e alimentei a planta.

- O que está acontecendo, Armando?

- Eu estou confuso, Helena. Não aguento mais ficar preso em casa. Eu já li reli toda a minha coleção de Tesouros da Juventude.

- Me ajude a arrumar a casa.

- Não quero, Helena. Não quero gastar energia com isso.

- Prefere gastar se angustiando, né?

- Talvez! Eu tenho pensado muitas coisas...  Por exemplo, agora há pouco, eu estava pensando que não passamos de uma gigantesca colônia de bactérias. Todos nós.

- Ai, meu Deus, Gustavo.

- Você me chamou de Gustavo?  Você está me traindo, Helena?

- Não! É muito pior. Eu esqueci seu nome.

- Meu nome é Armando, Helena!

- Calma! Eu ando muito nervosa. Já são muitos dias trancados. Eu nem sei mais que dia é hoje.

- Nem eu.

- Deu um apagão.

- Eu sei como é.  Calma. Vem cá. Me abraça.

- Essa pandemia expôs a nossa fragilidade, Armando. A gente não sabe o dia de amanhã.

- Eu te amo.

- Amar é enlouquecer juntos.

- Que bonito isso.

(A luz se apaga)

- O que foi isso?

- Um apagão.

- Armando, você lembrou de  pagar a conta de luz?

- ...

 

Não faz Sentido


No meu país, começamos o isolamento social em 16 de abril de 2020. Já estamos em 14 de junho de 2021 e ainda não saímos. A maioria dos países estabeleceu um lockdown e conseguiu frear o vírus, mas por aqui os políticos não quiseram comprar a briga com os empresários e nós estamos em quarentena há mais de um ano. Vai ser necessário que 100 milhões de pessoas peguem o vírus para que a gente consiga a imunidade de rebanho. Ontem, 90 milhões de pessoas estavam contaminadas. Pra frente, Brasil.

Eu não saio de casa há oito meses. Ninguém conta mais. As noites se derramam e se misturam com os dias. Nada faz sentido. Eu tenho conversado com alguns amigos que dizem que nada fazia sentido aqui mesmo antes do vírus. Todo mundo já acabou com a Covid, menos a gente. Mas nós também fomos os últimos e acabar com a escravidão.  Isso aqui está muito pessimista, eu sei. Mas faço lives. I’m alive. Ainda.

No início, as pessoas diziam: vai passar. Mas daí, nos demos conta que a nossa vida também estava passando. Isso não ajuda. É preciso tomar providências. O presidente pegou a doença no fim de 2020. Ele fez um churrasco que vinha prometendo desde maio e foi contaminado. Quando recebeu o resultado positivo saiu correndo pelas ruas cuspindo nas pessoas e a polícia teve permissão para atirar. O vice assumiu em seguida, mas não ficou muito tempo no cargo.

Não sei quem é o presidente atual. Há muito tempo não falo com ninguém. Esse país é muito esquisito. Esse país me deixa com falta de ar. Esse país comprova que ignorância mata. Vai passar?

 

 


Saudade

Eles já não se viam há seis meses. Mas aí, veio a pandemia de Covid, o isolamento social, e ele se pegou pensando nela. Ele tinha a desculpa perfeita para uma reaproximação, o mundo estava acabando, queria saber como ela estava. Soou educado. Ela não achou. Assim que reconheceu a voz dele do outro lado da linha, desligou. Mas e se ele estivesse doente? Ligou novamente. Iniciaram um papo. Combinaram de falar de novo amanhã.

Muita coisa havia mudado nos seis meses em que estiveram afastados. Ela mudou de emprego, ele adotou um cachorro. O peixe dela morreu. Ela tinha um peixe? Tinha, mas comprou depois que já tinham terminado.

- Qual era o nome do peixe?

- Saudade.

O nome do peixe não era saudade. Era Cirilo. Mas ela já tinha tomado algumas taças de vinho e achou que ficaria bonito dizer aquela palavra. Ele entendeu o recado. Na ligação seguinte, foi direto ao ponto:

 - Como você está vestida?

A partir daí muitas palavras quentes se derramaram. Por muitas horas. Por muitos dias. E vieram as juras de amor. Nada será como antes.

Acabou a pandemia. Combinaram de se encontrar. Foram muito felizes por duas semanas. Até que, exatamente como da última vez, na mesma sorveteria (ah, essas coisas se repetem) ele fez um comentário sobre um barulho que ela fazia quando tomava sorvete. O mesmo comentário da briga anterior. Ele nem lembrava. Ela não admitia, não se fala esse tipo de coisa. Ele não tem respeito pelos outros. Ela não tem humor. É uma chata. É um grosseiro. É insuportável. Vamos ficar por aqui.

- Logo agora que podemos nos ver...

- Pois é. Romeu e Julieta já nos mostraram a força de um amor proibido.

Ele era professor de literatura inglesa. Ela sorriu. Talvez se tornassem amigos. Na próxima pandemia.


A Princesa Coroada


Eles já estavam há setenta dias no mar. A Princesa Coroada singrava os mares grávida de mil quatrocentos e vinte tripulantes de várias nacionalidades que partiram da África do Sul rumo às Ilhas Gregas, mas que tiveram, por força da pandemia de Covid-19, que alterar a rota para o Brasil.

Presos na embarcação, os tripulantes já não eram mais companheiros de viagem. Se tornaram irmãos. E, como irmãos, tinham que se suportar. As brigas eram inúmeras e por qualquer motivo. O stress da situação, o confinamento, a incerteza, o medo faziam com que palavrões fossem berrados a todo momento, em muitos idiomas.

Emílio e Sara estavam na cabine sessenta e seis e há muitos dias não saiam. Foi a Armênia que, num momento de tédio extremo, falou em inglês um pouco alto, de forma que várias pessoas no convés da piscina ouviram: onde está aquele casal simpático, os brasileiros?

- Quais brasileiros? Perguntou uma espanhola.

- Emílio e Sara.

Mas Emílio e Sara já dormiam, de mãos dadas, na cabine.

Dias antes, Emílio conversou seriamente com Sara, sobre a sua decisão. Claro que quando saíram do Brasil, o plano não era esse. Mas quando saíram do Brasil, o plano também não era errar sem porto, o plano não era uma pandemia. O fato é que agora estavam os dois velhos, num barco, sem ter onde aportar. Estavam os dois velhos, apaixonados, no meio do mar. Estavam os dois velhos, aterrorizados, no meio de um caos. No meio de um sonho de conhecer as ilhas gregas.

Emílio disse para Sara que queria navegar outros mares mais misteriosos.

- São oitenta e seis anos, Sara, de busca.

Emílio se calou e olhou o mar. E agarrou a mão da esposa. O casamento que o ajudou a atravessar os anos, as tempestades dos anos.  Emílio era um barco singrando o tempo.

- E agora chega. Estou cansado.

Sara sentiu que o desespero ia toma-la. Ela queria se atirar nos braços dele. Mas ele abriu um sorriso tão brilhante, que a desarmou.

- Eu vou contigo.

- Não...

Emílio tentou argumentar, mas não havia o que ser dito. Viver é poder decidir.

O encarregado, depois de pedir licença muitas vezes, resolveu abrir a porta da cabine 66. Ao ver a cena, dirigiu-se ao comandante e explicou a situação. O comandante disse, apenas:

- Ainda mais essa.

Ao descer para a cabine, o homem não podia deixar de pensar nas questões práticas. Mas Emílio havia deixado um bilhete, junto com os passaportes, com recomendações claras:

- Por favor, nos lancem ao azul.

Isso tranquilizou o comandante. Mas em seguida ele ficou por intranquilo por ter ficado tão tranquilo diante dos corpos e começou a chorar.

Foi nesse exato momento que um viajante entrou na cabine e viu a cena. A notícia se espalhou como cinzas ao vento. Em pouco tempo, todos vieram, se amontoaram. Estavam Emílio Francisco Ribas e Sara Santos de Alencar, vestidos com suas melhores roupas, ele com terno branco que ia passar o réveillon nas ilhas gregas, ela com o vestido rosa guardado para a mesma ocasião, abraçados na cama. Na mão dela havia uma flor.

O silêncio no quarto só era interrompido por algumas interjeições de espanto e pesar, até que um francês despejou algumas palavras:

- Isso é que é amor.

A Armênia protestou, veemente:

- Isso não tem nada a ver com amor!

- É falta de fé. Disse um italiano.

- Amor não tem nada a ver com isso, prosseguiu a Armênia. Ora, veja só. Eu tenho setenta e seis anos, imagine se eu vou...

E se calou diante do horror do pensamento.

A partir daí, sugiram muitos debates na embarcação. O certo, o errado, o fim, os inícios, tudo colocado em xeque. Enquanto vagavam pelo mar esperando algum porto que os acolhesse, todos os passageiros colocaram a própria vida em retrospectiva. Parar ou seguir? Essa parecia ser a única questão filosófica relevante, lembrou um francês. A questão da felicidade também foi amplamente debatida.

Quando avistaram a costa brasileira, um russo lembrou os versos de Maiakovski:

- Dizem que em algum lugar, parece que no Brasil, existe um homem feliz.

- Emílio e Sara eram brasileiros, lembrou alguém.

- Idiotas. A Armênia ainda não os tinha perdoado.

Mas todos os outros passageiros no convés sorriram um sorriso de fim de tarde.

Atualmente, a Princesa Coroada, transatlântico com mil quatrocentos e vinte passageiros menos dois, se encontra ancorada na cidade de Salvador, na Bahia de Todos os Santos. A maioria dos passageiros gosta desse nome. Eles ainda não têm autorização para desembarcar, mas as brigas cessaram.
  

(Des) Encontros

Eles se conheceram na farmácia. Um desencontro. Ele tentava comprar cloroquina, um medicamento perigoso, porque havia visto na Tv que a substância, talvez, eliminasse o vírus da Covid-19. Quem poderá ser julgado por ter medo de morrer? Mas, ela a seu lado no balcão da farmácia, julgou:

- Pra que você quer esse remédio?

Ele pensou em responder “não te interessa”, mas quis ser simpático:

- Eu vi na TV...

Ela interrompeu.

- Tem gente que precisa desse remédio de verdade, sabia?

Ora, ele também precisava. Ou podia precisar. Vai saber.

Mas ela continuou:

- Esse remédio tem um monte de efeito colateral. Eu sei porque a minha tia usa. Ninguém toma cloroquina de forma preventiva. Só um imbecil.

Só um imbecil. Essa foi a frase que ficou ecoando na cabeça dele, enquanto ela já tinha virado as costas e se afastado.

O eco só foi interrompido pela voz do atendente da farmácia: não tem mais cloroquina.

Ele voltou para casa e deu continuidade a seu novo esporte: observar as casas dos vizinhos. De repente, no prédio em frente, a silhueta de uma moça lhe chamou a atenção. Bonita, de cabelos presos, ela falava ao telefone. Ele não tinha reparado nela antes. Agora não conseguia parar de olhar.  

Lentamente, começou a notar que ela parecia muito com a moça da farmácia, a que o havia chamado de imbecil. Era ela. Que coincidência. Tão improvável como a pandemia.

Começou a sentir falta de ar, calafrios. Era o amor ou o vírus? Se apaixonar na quarentena, só um imbecil faria isso. Mas se não agora, então quando?

Passou a noite em claro. Pensando. Mas dessa vez, não em catástrofes, mas no corpo dela. Próximo e distante. Será que ela estava respeitando o isolamento social? Estava na farmácia, um lugar contaminadíssimo. Será que ela ia aceita-lo, depois do infeliz episódio com a cloroquina?  De qualquer forma, já não pensava na morte iminente, mas na vida. Estava curado. Pelo menos do medo.

No dia seguinte, logo pela manhã, ela tomava café, encostada no balcão da cozinha. Ele, sem inibições, gritou. Seu gritou atravessou o ar mais ou menos silencioso da manhã:

- Oi!

Ela ouviu. Buscou com os olhos a voz. Seus olhos se encontraram, na distância. Ela tomou um susto. Se aproximou do peitoril da janela.

- Se lembra de mim?

Um outro vizinho gritou:

- Silêncio!

Ela forçou os olhos, ele resolveu ajudar:

- O imbecil da cloroquina!

Ela demorou, mas lembrou. Talvez aquela não fosse a melhor forma de se apresentar. Ela sorriu, sem graça, e fechou as cortinas.

Na manhã anterior, ela havia ido até a farmácia para comprar um cosmético absolutamente desnecessário. Mas quem pode julgar as necessidades alheias? A jornada humana se compõe nos detalhes. Um bom shampoo pode trazer segurança.

E na farmácia, ela se deparou com um completo imbecil.

Logo em seguida, o namorado ligou e terminou com ela, por telefone. Ela estava sozinha, insegura. O shampoo novo não atenuou nada, algumas coisas exigem outras respostas. 

E agora, o imbecil, estava do outro lado da rua, eram vizinhos. E quem sabe o que pode sair daí? Ela afastou a cortina e deu uma olhada, ele ainda estava lá. Que improvável. Esperava alguma coisa. Ela também esperava alguma coisa. Algo lhe faltava. Ela abriu a janela, encheu o peito de ar e gritou:

- Oi!

(Esse conto acaba aqui porque a partir de agora são infinitas as possibilidades, todo fim é brusco e o futuro, realmente, não sabemos).   


Jandira


Eu não sabia que marimbondos mexiam o pescoço. Mas ela virou o rosto em minha direção, a mamãe marimbondo, quando eu inventei de molhar a planta sob a qual ela estava construindo o ninho dela, na minha varanda.

Nos encaramos. Duas mães com suas crias. Havia uma música de faroeste na minha cabeça, na dela, minúscula, não posso afirmar o que rolava. Ou posso?

Tive uma identificação imediata com o minúsculo inseto, ela era tão próxima, uma mãe protegendo a sua casa, e tão distante, um inseto com um ferrão.

Meu primeiro impulso foi matar. Em nome do amor, claro.

- Ela vai ter que sair.

- Por que, mamãe?

- Porque esse bicho morde. É a nossa casa.

- É a casa dela também.

Como chegamos a isso? Uma casa dentro da outra? A casa dela dentro da minha.

O inseto cercado de ovos, em sua engenhosa casa de barro. Os olhos da minha cria estavam iluminadíssimos pela curiosidade, pelo perigo. Então fizemos o que os humanos fazem, a única saída para a nossa violência irracional: nomeamos.

- Ela vai se chamar Jandira.

Jandira não se mexeu. Seus minúsculos olhos fixados em mim.

- Ela pode morar com a gente? Minha filha perguntou.

Na minha cabeça, vieram outras perguntas: mas e quando os filhotes dela nascerem? E se nos morderem? E se?

Jandira estava imóvel, era como se me alertasse: não se constrói uma casa assim, no medo.

Eu entendi.  E ambas voltamos para as outras atividades que exigem a nossa coragem. E que na maternidade são muitas.

 


O Pássaro

 

- Socorro, socorro!

Ouço os gritos vindos da sala. Ouço um barulho difuso. Enquanto me dirijo pro local, já vou pensando que, dependendo da magnanimidade do acidente, teremos que ir ao hospital que é super contaminado então, meu Deus, que não seja nada grave, o clima é de pandemônio, com o perdão do trocadilho, em meio à pandemia.

A cena, quando entro na sala é a seguinte: a menina vestida de shorts jeans e blusa cinza, muito ofegante, diante de um pássaro cinza, também muito ofegante. Estão um em frente ao outro, são muito parecidos: pequenos, frágeis, frescos. É quase como se a alma da criança tivesse se desdobrado em pássaro.  A menina percebe que eu entrei na sala e me diz, em tom mais baixo, discreto.

- Socorro.

- Ele não faz mal.

Sem o filtro do susto, a menina olha novamente para o pássaro. Estuda. Agora somos três confinados, sem poder voar. A menina e eu estamos lutando com os dias, trabalhando a nossa resiliência, alternando os nossos sintomas. Todo pássaro é um pássaro. Já uma pessoa é um livro de histórias. Em mim, a claustrofobia começa a dar sinais a cada manhã mais claros, mais incontornáveis. Penso no mar com desejo, com saudade. A menina experimenta suas várias idades, cresce e me explica cientificamente como se comportam os vírus, depois volta a ser um bebê no meu colo. Vive seus vários tempos. As crianças vivem o tempo todo. E também gostam de ficar no ninho. Somos nós, os adultos que devemos lhes dizer:

- Tem que escancarar essas janelas!

O marido vem como se entendesse tudo: o pássaro entrou pela janela sem querer. Ele pode sair, nós ainda não.

O marido abre a janela ruidosamente: vento, vento de outono. O pássaro vai embora, voa. Nós três nos olhamos. Já sabemos o que é o amor: ventania. Já, já chega a nossa vez. Nós também sairemos, em breve. Mais fortes.