A Cidade dos Homens Invisíveis.



Pela manhã, a casa parece vazia, mas a mesa está posta. 
Os grãos cristalinos dançam no açucareiro.
Têm-se a impressão de que os talheres estão suspensos no ar.
As casas invisíveis estão repletas de espelhos. Nesse infinito, os homens se buscam.
Os homens invisíveis consideram o rosto humano uma obscenidade.

As ruas desertas estão repletas de homens invisíveis.
 Nos dias de chuva, são espaços que se abrem entre gotas.
Os cães parecem caminhar livres pelas ruas.
A luz perpassa os seus sorrisos vítreos.
Todos os dias os homens invisíveis morrem, nascem outros.



São Paulo, 2011

Passagem



A mulher desce a rua sem porque nem quando.
É só uma mulher passando, como um rio.
Tudo é incerto, mas seus passos são firmes.
A mulher toma a forma de um pássaro,
esforça-se para esquecer.
A mulher não tem nome.
Tudo está à seu favor, tudo está ao seu redor.

Quantas mulheres passam diariamente nessas ruas?
Quantas usam as saias amarelas e negras?
Quantas mantêm o coração em movimento?
A vida é grave. Não tão grave como no poema, no entanto.

A mulher caminha para arejar-se.
Um dia não estará. 

O Império em Ruínas.



Tinha sete anos quando ganhou o cachorro. Partiu para dar banho no bichinho.
- Ele ainda não toma banho! É muito novinho! Disse a mãe.
Será que está com fome?
- Ainda não! Tem que esperar a hora do jantar, igual a você!
Seus dedos eram violentamente mastigados pelo novo amigo, enquanto o pai, preocupadíssimo, desfiava a ladainha sobre higiene, vacinas, rações e passeio periódicos.  
- Você será o meu cachorro - ele disse orgulhoso e confiante. O cão latiu. 
E saíram os dois para o passeio.
O animalzinho queria deter-se em muitos cheiros que encontrava no caminho, mas era arrastado para a sua primeira exibição pública. Todos tiveram inveja de seu cachorrinho. E ele se sentiu orgulhoso por ter inspirado novamente a confiança dos pais.
No verão passado, a mãe lhe deu uma tartaruguinha de presente, a Edvânia, cujo nome era uma homenagem a avó paterna. Tudo ia muito bem até o dia em que a tartaruga caiu da janela. Nove andares de queda, não havia tartaruga que resistisse. Mas Edvânia sobreviveu. Foi doada a um primo mais velho, sob o juramento materno de que ele nunca mais ia ter um bichinho. Um ano depois, as coisas mudaram. Ele já era um rapaz, a mãe mesmo é que dizia. E então recebeu a grande responsabilidade de cuidar do cachorro.
O passeio no parque seguia animado, com grandes corridas e gritos, até que chegou a menina de vestido vermelho. Lucília, o nome dela. Ele soube quando as outras crianças gritaram:
-  Lucília, vem ver o cachorro!
Lucília veio andando toda arrumadinha no meio da tarde. E aquela era a segunda vez que ele se apaixonava num único dia.
- Esse cachorro é seu?
Sim. Era o cachorro dele. Ele era o proprietário.
Lúcilia olhou os dois com desdém e foi correr do outro lado.
Se algum adulto estivesse supervisionando as crianças no parque, talvez tivesse notado que Lucília havia ficado enciumada porque o dono do cachorro era um menino pequeno e não ela, que já era mais velha. Por isso havia refreado o impulso de apertar a carne macia do animalzinho. Mas ele, que não sabia disso, perdeu-se pela primeira vez nos mistérios da alma feminina.  O que é ela queria? O que podia ser melhor que a vida de um cãozinho?
E tão entretido estava nesses pensamentos que não notou o momento que o cachorrinho foi levado por umas crianças.
Ele atravessou o parque seguindo a menina, ainda sem saber que tantas vezes seguiria mulheres por outras alamedas, e encontrou-a sentada num montinho de areia, fazendo bolinhos. Não podia oferecer-lhe outra coisa além de incertezas, mentiras e falsas esperanças. Ainda assim queria brincar com ela. Ela, que o havia escolhido.
- Posso brincar com você?
E o amor durou a tarde toda naquele montinho de areia, até a hora em que as mães chamaram para o banho. 
- A gente vai se ver amanhã?
E ela respondeu como se desde o começo esperasse a pergunta e já estivesse saboreando a resposta:
- Não.
Durante o jantar o pai lhe perguntou pelo presente. Ele ainda lembrava a Lucília de olhos caninos, a brincadeira de mordidinhas que eles fizeram de tarde. Pelo cachorro, não podia responder. Mas o pai exigia o cachorro.
De noite o parque já não era aquele que brilhava sob o sol. Já não havia nenhum sinal de Afrânio (esse era o nome do cachorro, uma homenagem ao avô materno). Enquanto caminhavam de volta pra casa, solitários ainda que estando lado a lado, o pai notou o desolamento do menino, teve pena de brigar.  O maior castigo dele era mesmo aquele, andar pela noite lamentando as suas perdas, a impossibilidade de recuperar o que de fato nunca fora seu: o amor da menina, a vida de um cachorro.

Pai e Filha

 O pai e a menina entraram no café de mãos dadas.  Eles se sentam e rapidamente a menina escorre pra debaixo da mesa. Tudo a diverte: A sujeira do chão, o pé acrílico da mesa, o sapato do pai. O mundo embaixo da mesa é outro. As costas do homem dóem, a menina não pára quieta.  Seus olhos grandes percorrem as outras mesas a procura de aventuras. Os olhos do pai buscavam em pernas femininas algum consolo. O homem sorvia seu café e a criança ali era o seu erro materializado. Coisa que já fora parte dele não podia prestar. A menina era um mistério cruel. Era pequenininha, o acidente, e olhava o mundo atenta, como se estivesse sorrindo. De repente, de tanta agitação de vida no seu peito, desequilibrou-se e caiu da cadeira. Na queda ainda bateu a cabecinha na quina da mesa.  O filetinho de sangue a fez chorar, o machucado mesmo não doía. Foi só o susto. E o pai limpou sua testa com os guardanapos de papel. Acabou o passeio. Garçon traz a conta, olha a menina com simpatia. Ela toda vermelhinha, os olhos ainda úmidos. O mundo não é lugar pra crianças. O pai e a menina iam sair do café de mãos dadas, mas ela libertou a sua mãozinha, saiu correndo pela calçada, livre como um passarinho. O pai a seguia de longe, sem saber ainda pra onde levaria a menina.