Um dia desses, ainda vou morrer de dor



Um dia desses, ainda vou morrer de dor.
Não essa que me almoça jantares e dejejuns. Essa chamada úlcera. Sim, porque aos 35 anos, sou o petisco de uma úlcera duodenal. Estou em seu cardápio desde os meus 28 anos.
O doer é bem outro...
Um dia desses, ainda vou morrer de dor no pescoço. Porque sou negro e vivo num país que me impõe andar de queixo erguido dia e noite – quiçá, até dormir de queixo erguido. Há que ser assim. Do contrário, sou devorado por essa úlcera desgraçada chamada racismo.
E, cacete, condenado a esse torcicolo eterno, ainda há os pseudo-ortopedistas da vida alheia – tortos até a alma – que me diagnosticam arrogante. Imbecis... Procurem vós um oftalmologista e enxerguem-se.
Um dia desses, ainda vou morrer de dor. No diafragma. Toda vez que a respiração faz espiral porque a senhora ao lado da qual passei agarrou-se firmemente à alça de sua bolsa preciosa. Quem tomou o susto fui eu, dona fulana.
Um dia desses, vou morrer de dor. Nos dentes. Que trinco com agonia genuína quando me perguntam, nos supermercados e lojas em que passo para fazer minhas compras: “és empregado daqui, filhinho?”. Não, filhinhos. Não sou. O problema não está no fato de ser empregado de um supermercado ou de uma loja. Claro que não. Está no fato de ser a escolha da pergunta. Dezenas em redor e o alvo único? Moi. Mesmo que não esteja eu usando uniforme algum. Ah, sim. Há, sim, um uniforme: a minha epiderme que, historicamente, não desperta no demente entendimento geral a possibilidade de eu ser qualquer outro profissional. Não dorme na minha derme a evidência de que sou Bacharel em Direito e Gestor e Produtor de Eventos Culturais, formado em faculdades particulares. E não: eu não precisei de cota alguma para alcançar tais graduações. Nem para me trazer a gradação de poeta, contista, dramaturgo premiado. Que sou.
Um dia desses, ainda vou morrer de dor. Na mão. Que fecho até quase esmagar. Não, Carlos. A promoção não vai ser tua. Fica de costas, mano. Porque não tens o perfil...
Um dia desses, ainda vou morrer de dor. Porque cansa. Extenua precisar matar todo dia. Leões. Imensos. Vírus de pré-concepções. Milhares. Nada nos mata mais e mais, lentamente, que precisar ser um assassino das próprias dores para precisar sobreviver.
Um dia desses, ainda vou morrer de dor. Porque é assim que renasço. Lindo. Negro. Alma.


( Carlos Correia Santos é paraense, natural de Belém. Bacharel em Direito, jornalista e produtor cultural)

Reflexão sobre a Impermanência.


Temos a sensação de que o tempo passa rápido somente quando queremos retê-lo. Algumas experiências humanas prazerosas nos fazem desejar congelar o tempo, mas não podemos. Somente o tecido escorregadio da memória pode guardar qualquer coisa. A fotografia é uma das formas que encontramos de minimizar essa angustia de travessia. É comum, ao olharmos para as nossas crianças, pensarmos que o tempo voou. Porque queríamos manter o bebê eternamente nos braços, porque queríamos manter a criança eternamente brincando sob a mesa, porque era bom. O tempo foge de quem quer capturá-lo.