Vietnã


Mulher, como você se chama? – Não sei.
Quando você nasceu, de onde você vem? – Nao sei.
Para que cavou uma toca na terra? – Não sei.
Desde quanto está aqui escondida? – Não sei.
Por que mordeu o meu dedo anular? – Não sei.
Não sabe que não vamos te fazer nenhum mal? – Não sei.
De que lado você está? – Não sei.
É a guerra, você tem que escolher. – Não sei.
Esses são teus filhos? – São.

(Poemas, Wislawa Szymborska. São Paulo: Cia das Letras, 2011. Tradução de Regina Przybycien)





Passado


O passado é o caroço da azeitona que eu não cuspi, resta áspero na língua.
O passado é o calo, é a pedra no sapato, o prato de porcelana azul.
É o nome que eu chamo, a mulher ausente, os gritos na escada.
O passado é o grito seguido de silêncio.
É o que me escapa, meu motivo recôndito.
É o quadro na parede,
o retângulo esmaecido do que um dia foi o quadro na parede,
a mesa de jogos,
o jardim interno,
a casa para a qual não posso voltar. 

Sobre Tchecov



Shakespeare decifrou o enigma humano.

Tchecov não foi um decifrador de enigmas, não foi leitor de mandalas, não foi um mago da existência. Apenas Shakespeare pôde fazer isso com tamanha maestria e, depois dele, Beckett.

Tchecov foi um pintor de retratos.

Se os textos de Shakespeare, na atemporalidade do teatro, nos mostram como o homem verdadeiramente é, o teatro de Tchecov nos dá o painel de como o homem definitivamente parece ser. E diante do retrato, diante do espelho russo, ficamos como o Cláudio da peça Hamlet: denunciados. Trememos.

Abaixo, trechos de duas cartas de Gorki para Anton Tchecov; a primeira data da segunda quinzena de novembro de 1898 e a segunda de 5 de maio de 1899.


[...]
Alguns dias atrás, assisti a Tio Vânia. Vi e chorei como uma mulher, embora esteja longe de ser uma pessoa nervosa. Entrei em casa aturdido, transtornado por sua peça; escrevi uma longa carta para o senhor e rasguei-a. Não se pode dizer com clareza o que a peça desperta no fundo da alma, é só um sentimento, mas olhando suas personagens em cena, parecia que um serrote sem fio me cortava todo. Os dentes passavam direto pelo coração, que se contraía, gemia, despedaçava-se. Para mim, é formidável que Tio Vânia seja uma forma de teatro completamente nova, um martelo com o qual o senhor bate na cabeça vazia do público. De qualquer jeito, o público é invencível na sua estupidez e ele o compreende mal n’A Gaivota e no Tio Vânia. O senhor escreverá outros dramas? O senhor os faz admiravelmente!
No último ato de Vânia, quando o doutor, depois de uma longa pausa, fala do calor da África, comecei a tremer de êxtase diante de seu gênio e de medo pela humanidade, pela nossa existência incolor e miserável. Como o senhor golpeia aqui vigorosamente o coração e o como o faz de maneira precisa! O senhor tem um enorme talento. Mas, diga-me, que prego quer cravar com tais golpes? O senhor ressuscitará o homem assim? Somos seres desprezíveis – sim, realmente, pessoas enfadonhas, rabugentas, repugnantes; e é necessário ser um monstro de virtude para amar, lastimar, ajudar a viver essas nulidades que somos. Mas, mesmo assim, os homens causam piedade. Eu, que estou longe de ser um homem de virtude, soluçava vendo Vânia e os outros com ele, se bem que seja completamente estúpido soluçar e, ainda mais, confessá-lo. Parece-me, veja o senhor, que nessa peça o senhor trata os homens com a frieza do demônio. O senhor é indiferente como a neve, como a tormenta. Perdoe-me, talvez eu esteja enganado, em todo caso, falo somente de minhas impressões pessoais. Mas, veja, sua peça deixou em mim um medo, uma angústia semelhante à que sentia em minha infância. [...]

[...]
Como é estranho que a literatura russa, tão vigorosa, ignore o simbolismo e sua tentativa de tratar de problemas essenciais, de problemas da alma.
Na Inglaterra há Shelley, Byron, Shakespeare – A Tempestade, O Sonho –; na Alemanha, Goethe, Hauptmann; na França, Flaubert – A Tentação de Santo Antônio –; entre nós, somente Dostoiésvski ousou escrever a Lenda do Grande Inquisitor – e isso é tudo. Será que somos, por natureza, realistas?
[...]


Tchecov respondeu às cartas de Gorki agradecendo aos elogios, comentando o trabalho do colega, indicando a leitura de outras peças. Mas não respondeu a nenhuma de suas perguntas. A Tchecov parecia bastar suscitar as dúvidas e não as esclarecer. E com o peito repleto de dúvidas o homem se movimenta, busca a sua clareza, as suas respostas individuais. Diante da crueza do retrato o homem se questiona e, sozinho, decide. E assim ele é Deus, quando se enxerga.