João



Ninguém escreve ao coronel. Sua solidão, assim como as suas terras, é vastíssima.
E viver é isso mesmo: Ir-se partindo, perdendo os meios, os inícios. No fim restam ossos e loucura. Coronel ficou louco, dizem. Sonhou com o diabo, até. Mas sonho é sonho, outra coisa que se perde.
Coronel fica espreitando o escuro. Deus nunca responde. Naquela época nem sabia que havia a morte, os frios. Um dia Deus manda recado, sua presença se faz notar, nem que seja numa florzinha, coisinha pequena, até num bicho dá pra ver Deus firme ali, no mato.
Estrada caminhada em silêncio.
Nunca mais viu Mariinha. Também não voltaram a juventude nem a esperança. Viver é ir se perdendo. Estrada que já acaba.
A estrada de Mariinha, seus verdes anos, cheia de risadas, de lua e sol. Saudade imensa.
O coronel fecha-se em bois e silêncios. Essas entranhas ruins. De noite, o seu peito vazio pesa como pesa o nada, o grande peso da ausência, maior que todos os outros.

Escassez


Não tenho nada a oferecer-te:
Alguns relâmpagos de lucidez,
As histórias que impregnam meu corpo,
Meu corpo e suas vontades,
Os sonhos perdidos.

Não tenho nada a oferecer-te:
Um sorriso melancólico,
O tempo que ainda me resta,
O impulso da desistência, 
E ainda uma estrela longínqua no céu, minha idéia do paraíso,
Nossas vidas entrelaçadas.

Para Ela



Tenho vivido assustado, sob sombras
Desde o dia em que te conheci.
Tu vieste à minha vida como o sol,
Vieste buscando o seu caminho entre frestas,
iluminando os meus porões sombrios.
Resta o medo desse dia escurecer.

Tu, nos meus sonhos, já brincavas entre nuvens,
com teus sorrisos de luas e estrelas.
Vertias a tua beleza naquela e em outras manhãs.


Claudia Barral

Mulher


Pela manhã, funde-se num copo, um quadro, uma fita, forma uma fila de janelas. A luz adentra seus vidros, cabelos, cadeados. Seus dedos me espetam, riscam a louça.  Ela amanhece com a casa, o sol lambe-lhe os tijolos, as curvas.
À tarde, transmuta-se em azulejos, as grandes rodas dos ônibus, o fio que conduz as palavras, o mar que molha a cidade. Seus olhos se tornam azuis, seus cabelos são algas e as unhas conchas.
Mais tarde é o preto da noite, os faróis dos carros e tudo mais que vence o dia. As estrelas, os dragões que ali habitam, as explosões e os silêncios.



"Todas as manhãs o aeroporto em frente me dá lições de partir".

Manuel Bandeira

Sementes


Ser mulher é sangue e espera.
Também vem de outras formas: a delicadeza,
os mistérios das carnes,
a voluptuosidade.
Ser mulher é caminhar os subterrâneos, embrenhar-se,
Voltar ao sangue: O vermelho sem economias,
os azeites,
o céu de maio em contraponto com a água,
a capa da menina,
o morango, a melancia,
os olhos da besta fera,
as línguas.  

As Três Palavras Mais Estranhas - Wislawa Szymborska




Quando pronuncio a palavra Futuro
a primeira sílaba já pertence ao passado.

Quando pronuncio a palavra Silêncio,
destruo-o.

Quando pronuncio a palavra Nada,
crio algo que não cabe em nenhum não-ser.



Wislawa Szymborska
Tradução de Elzbieta Milewska e Sérgio das Neves

Incompletude


Aquele sonho de nós dois,
o leite do meu medo derramado. 
Teu olho no meio da testa enxerga o infinito,
eu sou o oposto:
Os olhos fechados do morto,
A estrada deserta, os avessos, o sertão, o samurai.  
Eu, tanta vezes abandonado em minha solidão matinal, leve como edifícios tombando;
A solidão noturna, clara como olhos escuros.
Aquele sonho perdido de nós dois, onde você dança piruetas no ar e eu canso.
Aquele sonho terrível de nós dois, onde você fere como foi ferida e eu manso.
Você inteira e eu aos pedaços.



Claudia Barral 

Canção de Reencontro




Quero cantar outra vez aquela nossa canção,
Eu chegando cansado e você tão sã.
Ainda é cedo pro nosso encontro, ainda temos tempo
Desvendar essas tardes ou anoitecermos,
Caminhar esses pátios, dobrar essas esquinas,
Percorrer os palácios, aprender nossos caminhos,
Todas as nossas partes.

Quero lembrar outra vez aquele nosso refrão,
Eu chegando tão só e você cansada.
Ainda somos meninos, ainda temos tempo
De cumprir nossa parte,
Percorrer avenidas, enfrentar tempestades,
Desbravar esses mares, essa nova cidade, a vida,
Nos perder nos mesmos velhos lugares, desaprender os caminhos.



Cláudia Barral 

Desejo

A música que eu busco e não existe,
quente, seca, triste,
crianças se agitam como folhas,
a moça passa rindo e não me olha.

A música que eu busco e que me dói,
seu som assa os pães na alvorada,
o medo que eu tenho e sempre tive de dormir e acordar e ainda ser noite.
                                                                               

A música que eu quero e que me falta,
o silêncio dos seus olhos cristalinos,
estar completa rodeada de ausências,
os portões da minha terra que se abrem e se fecham ao simples toque de uma mão.

A música que antecipo, mas não escuto
quando caminho solitário pela noite,
quando penso nos amores que perdi,
quando conto quantos anos ainda tenho ou os que me faltam.

A música que escuto, mas não danço,
a cidade mais em mim do que no mapa,
as lembranças que eu trago e formam (e deformam) o meu corpo.


Claudia Barral 


A Lista



A falta, a fala, a lacuna,

a sombra,

a tarde infeliz,

as árvores que envelhecem... não, as árvores estão cheias de vida,

você, o único a saber,

a solidão,

meu nome desconhecido, quem supõe que me conhece,

quem lê essas linhas e as interpreta,

todos os que partiram,

um deus tri partido,

um animal de chifres,

o silêncio que descaracteriza a mentira,

a verdade que habita o silêncio,

uma tela de Frida,

um barco naufragado,

as escadas desertas na fotografia,

sua ausência,

a chuva... não, a chuva está cheia de vida,

o fim,

o telefone mudo,

as distâncias,

o grito pálido,

o fracasso,

o fim,

as palavras amargas e inúteis.

Ave Rara


Inspirações são pássaros que se parecem mais com bem- te- vis do que com galinhas.
De tarde as revoadas de inspirações fazem com que escritores passem toda a noite trabalhando.  
Inspirações parecem gostar de ombros distraídos. Elas pousam nos fios telefônicos e quando chove acompanham os homens que caminham sem guarda-chuva.  
A ave aumenta ou diminui de tamanho, conforme a ocasião.
Pequenas inspirações podem aparecer a grandes homens, mas grandes inspirações raramente aparecem aos homens pequenos.
As inspirações podem ter penas vermelhas, azuis, ou negras.
Alguns homens viram inspirações apenas uma vez na vida. (Passam então todo o tempo tentando reencontrá-las).
A ave rara pertence à família das fênix, da pomba do espírito santo e das galinhas dos ovos de ouro, portanto há quem defenda que ela não existe.  
Para caçar inspirações é preciso fôlego, concentração e alguma sorte.

Ausência



Sinto-me incompleto,
paisagem quando o seu rosto desaparece na distância.

Sinto-me absorto
O animal que corre e subitamente pára, atento a algum som para nós inaudível.

Essa sombra ainda persiste em meu corpo,
Como ainda persistem seus traços nos traços dos seus filhos.

Sigo catando as folhas caídas nas calçadas, talvez elas tenham te visto passar,
talvez guardem segredos seus.

Texto Subaquático



O submarino navega sobre as palavras,
confuso entre braços e pernas, por alamedas invisíveis.

O submarino flutua sobre o amor.
Os cometas rasgam as costas da noite, os peixes, os mortos, tudo passa em silêncio.

O submarino aprofunda-se na noite,
Vê o caráter sobrenatural do mundo: Os moinhos de vento, os corpos dos homens, os elefantes.  

Casa de Chá


A primeira vez que ela apareceu o lugar se encheu com um aroma de flores. Isso não é uma licença poética. Ela trazia um buquê de gerânios nos braços e parecia bastante feliz.  Pediu café e sequilhos. Comeu sem pressa. Mal olhou pra mim. Partiu como um vento, que nunca mais vai voltar. Mas ela voltou duas semanas depois. Estava acompanhada. Sentaram os dois numa mesa do canto. Em algum momento trocaram um beijo rápido. Seus cabelos longos pareciam braços que lhe adornavam a cabeça e se agitavam num ritmo frenético.  Parecia que a qualquer momento ia derrubar um copo, uma xícara, uma parede. Mas conseguia achar o equilíbrio em sua exuberância e nunca quebrou nada no bar. Eu quebrei uma vez um copo, logo depois que ela me chamou pelo nome. Na quarta vez que esteve lá, não sei como, descobriu o meu nome. E ao invés de fazer o gesto simples e amigável para chamar o garçon, pronunciou meu nome, em alto e bom som. O copo que estava na minha mão caiu, imediatamente. Passei uma semana ouvindo aquele nome naquela voz dentro de minha cabeça. À noite ficava tentando lembrar exatamente como tinha acontecido, meu coração se angustiava com a possibilidade de nunca mais vê-la, ao mesmo tempo antecipava o próximo encontro. Duas semanas depois aconteceu de novo.  Ela entrou e disse, sem me olhar nos olhos: Tudo bem? Não lembro o que respondi. Meus dentes são feios, não gosto de falar muito. Fiquei incomodado, ela percebeu. Nunca mais falou comigo. E voltava sempre pedindo café, guaraná, sanduiche, salada, pão, suco. Experimentava o cardápio inteiro. Nem sempre sentava numa das mesas que eu atendia, aí quem tirava o pedido dela era Maria Luíza, a outra garçonete. Eu sempre perguntava, como quem não quer nada: Qual o pedido da mesa 18? Qual o pedido da mesa 14? Eu me interessava muito pelo quê ela comia. Dá pra conhecer bastante uma pessoa por suas preferências alimentares. Um dia Maria Luíza me confrontou: Por que você anda tão interessado nos pedidos daquela moça? Eu desconversei. Maria Luíza não percebeu mais nada. Um dia falou: Você repara como essa moça sempre vem aqui sozinha? Coitada... Eu disse que só reparava o meu serviço. Não era verdade. Eu sempre reparei nas mulheres, em todas. As que entravam, as que passavam pela porta da lanchonete, todas.  Mas isso foi mudando... Depois que comecei a reparar na mocinha solitária, todas as outras perderam o encanto. Todas eram iguais, e somente ela era ela. Então aconteceu que um dia ela entrou muito séria, eu fui tirar o segundo prato e ela me olhou nos olhos: Eu estou esperando alguém. Eu pensei que era uma amiga, mas não era.   E ele chegou logo depois.  Era uma conversa grave, os olhos dela escureciam.  Então começou a chorar. Não era eu quem atendia a mesa em que eles estavam, mas me aproximei para ver se ouvia alguma coisa. Meu coração estava apertado. Eles falavam sobre uma criança, uma criança que não viria ao mundo. Eu quis ter um filho com ela, era tudo o que eu queria naquele momento. Ele se levantou, deixou um dinheiro na mesa e partiu. Eu queria dizer alguma coisa, mas meus dentes estão estragados, eu não tive coragem.  Eu andava economizando um dinheiro para arrancar meus dentes podres e colocar novos no lugar. Eu ia começar o tratamento aquela semana. Mas naquela semana ela foi embora e nunca mais voltou.

Tomate e queijo.



A água quente no banho, a unha feita, a roupa recém chegada da lavanderia,
No mais, não tinha amigos, marido ou filhos.
O domingo acentua a solidão.

Todos os dias, mantinha a rotina: Descia a rua, comia o sanduiche, esperava.
Nada acontecia.
Então era preciso subir a rua, voltar a casa, sentir-se só, dormir.

Às vezes ia comer sanduiche do outro lado da cidade.
Pegava o metrô, o ônibus, ia vendo muita gente.
Ia vendo todas aquelas caras e esquecia-se da sua.

Como era mesmo o seu rosto?
Olhava no espelho de alguma vitrine.
De resto não perdia tempo com confusões.
Seguia.

Uma noite sonhou um queijo podre, azul.
Acordou nervosa.
Sonhar não faz mal.
Até lá, a ladeira, as descidas e subidas,
a espera, o sanduiche, o tempo. 

Cotidiano



É o seu primeiro dia no ambulatório do hospital geral do estado e ele precisa contar ao homem na sua frente que seus exames diagnosticaram uma doença rara e incurável.
  
O homem na sua frente trabalha como perfurador de uma companhia de gás, fez um exame de rotina porque a filha o obrigou. Agora espera saber o resultado.

A técnica de enfermagem que passa pelo corredor e vê as radiografias expostas na sala do jovem médico lembra que precisa retocar a maquiagem de seu olho machucado.

O auxiliar de limpeza do hospital abraça a técnica de enfermagem no depósito, após tê-la flagrado chorando.

Ao ver o rapaz e a enfermeira saindo do depósito a faxineira perde-se em reminiscências da infância.  

A médica residente comenta com a recepcionista que a faxineira derrubou por acidente um frasco de éter no quinto andar.

Naquela noite, ao sair do hospital, a recepcionista receberá um elogio de um estranho. Em casa, sorrirá na frente do espelho.

Em silêncio, a filha da recepcionista observa o mundo através do vidro dos óculos.

O motorista do ônibus que passa pela rua ainda não sabe, mas será pai.

No mesmo ônibus viaja uma mocinha que ainda esta tarde confessará seu amor por uma prima carnal.  

A prima da mocinha precisará largar o emprego, pois o seu pai está com uma doença rara e incurável.



Aula Prática


Eu não tenho nada pra dizer, foi só isso o que ele disse. Sentia-se capturado pelos pés, como um bicho de cabeça pra baixo. Em teoria, um médico não devia ser um completo imbecil. Mas aquele era. Não queria ser o centro daquelas atenções. Nunca desista, tente outra vez, nunca pare de acreditar, nada daquilo funcionava para ele. Ele era um homem que gostava de matar. Era simples. O tempo iguala tudo. O homem que mata, o homem que constrói um edifício, o homem que conta uma história para os netos são todos os mesmo homem.
Antes, ela se movimentava graciosamente pela casa. Subitamente, ela já não está. Não mais será. Nunca voltará a ser.
Ele, sob o olhar estupefacto de professor e alunos do curso de psiquiatria da faculdade Rio Branco abriu a janela e acendeu um cigarro.    

Poema para cidade da Bahia.

A cidade que esta tarde me viu partir.
A cidade que veio de Aruanda.
A cidade baixa.
A cidade abriu falência.
A cidade fálica, mergulhada em urina.
A cidade filtrada pelos meninos do cais do Porto, suas silhuetas escuras e pequenas.
A cidade repousa, circundada por varejeiras.
A cidade descoberta, abandonada, redescoberta.
A cidade e suas ilhas.
A cidade que faz o itinerário: Praça da Sé – Avenida Sete – Campo Grande – Garcia – Garibaldi – Rio Vermelho – Amaralina – Itapuã - Dique do Tororó – Lucaia – Vasco da Gama – Baixa dos Sapateiros - Praça da Sé.
A cidade que era o sonho, que recebia barcos.
A cidade impregnada de lembranças. 

A Cidade dos Homens Invisíveis.



Pela manhã, a casa parece vazia, mas a mesa está posta. 
Os grãos cristalinos dançam no açucareiro.
Têm-se a impressão de que os talheres estão suspensos no ar.
As casas invisíveis estão repletas de espelhos. Nesse infinito, os homens se buscam.
Os homens invisíveis consideram o rosto humano uma obscenidade.

As ruas desertas estão repletas de homens invisíveis.
 Nos dias de chuva, são espaços que se abrem entre gotas.
Os cães parecem caminhar livres pelas ruas.
A luz perpassa os seus sorrisos vítreos.
Todos os dias os homens invisíveis morrem, nascem outros.



São Paulo, 2011

Passagem



A mulher desce a rua sem porque nem quando.
É só uma mulher passando, como um rio.
Tudo é incerto, mas seus passos são firmes.
A mulher toma a forma de um pássaro,
esforça-se para esquecer.
A mulher não tem nome.
Tudo está à seu favor, tudo está ao seu redor.

Quantas mulheres passam diariamente nessas ruas?
Quantas usam as saias amarelas e negras?
Quantas mantêm o coração em movimento?
A vida é grave. Não tão grave como no poema, no entanto.

A mulher caminha para arejar-se.
Um dia não estará. 

O Império em Ruínas.



Tinha sete anos quando ganhou o cachorro. Partiu para dar banho no bichinho.
- Ele ainda não toma banho! É muito novinho! Disse a mãe.
Será que está com fome?
- Ainda não! Tem que esperar a hora do jantar, igual a você!
Seus dedos eram violentamente mastigados pelo novo amigo, enquanto o pai, preocupadíssimo, desfiava a ladainha sobre higiene, vacinas, rações e passeio periódicos.  
- Você será o meu cachorro - ele disse orgulhoso e confiante. O cão latiu. 
E saíram os dois para o passeio.
O animalzinho queria deter-se em muitos cheiros que encontrava no caminho, mas era arrastado para a sua primeira exibição pública. Todos tiveram inveja de seu cachorrinho. E ele se sentiu orgulhoso por ter inspirado novamente a confiança dos pais.
No verão passado, a mãe lhe deu uma tartaruguinha de presente, a Edvânia, cujo nome era uma homenagem a avó paterna. Tudo ia muito bem até o dia em que a tartaruga caiu da janela. Nove andares de queda, não havia tartaruga que resistisse. Mas Edvânia sobreviveu. Foi doada a um primo mais velho, sob o juramento materno de que ele nunca mais ia ter um bichinho. Um ano depois, as coisas mudaram. Ele já era um rapaz, a mãe mesmo é que dizia. E então recebeu a grande responsabilidade de cuidar do cachorro.
O passeio no parque seguia animado, com grandes corridas e gritos, até que chegou a menina de vestido vermelho. Lucília, o nome dela. Ele soube quando as outras crianças gritaram:
-  Lucília, vem ver o cachorro!
Lucília veio andando toda arrumadinha no meio da tarde. E aquela era a segunda vez que ele se apaixonava num único dia.
- Esse cachorro é seu?
Sim. Era o cachorro dele. Ele era o proprietário.
Lúcilia olhou os dois com desdém e foi correr do outro lado.
Se algum adulto estivesse supervisionando as crianças no parque, talvez tivesse notado que Lucília havia ficado enciumada porque o dono do cachorro era um menino pequeno e não ela, que já era mais velha. Por isso havia refreado o impulso de apertar a carne macia do animalzinho. Mas ele, que não sabia disso, perdeu-se pela primeira vez nos mistérios da alma feminina.  O que é ela queria? O que podia ser melhor que a vida de um cãozinho?
E tão entretido estava nesses pensamentos que não notou o momento que o cachorrinho foi levado por umas crianças.
Ele atravessou o parque seguindo a menina, ainda sem saber que tantas vezes seguiria mulheres por outras alamedas, e encontrou-a sentada num montinho de areia, fazendo bolinhos. Não podia oferecer-lhe outra coisa além de incertezas, mentiras e falsas esperanças. Ainda assim queria brincar com ela. Ela, que o havia escolhido.
- Posso brincar com você?
E o amor durou a tarde toda naquele montinho de areia, até a hora em que as mães chamaram para o banho. 
- A gente vai se ver amanhã?
E ela respondeu como se desde o começo esperasse a pergunta e já estivesse saboreando a resposta:
- Não.
Durante o jantar o pai lhe perguntou pelo presente. Ele ainda lembrava a Lucília de olhos caninos, a brincadeira de mordidinhas que eles fizeram de tarde. Pelo cachorro, não podia responder. Mas o pai exigia o cachorro.
De noite o parque já não era aquele que brilhava sob o sol. Já não havia nenhum sinal de Afrânio (esse era o nome do cachorro, uma homenagem ao avô materno). Enquanto caminhavam de volta pra casa, solitários ainda que estando lado a lado, o pai notou o desolamento do menino, teve pena de brigar.  O maior castigo dele era mesmo aquele, andar pela noite lamentando as suas perdas, a impossibilidade de recuperar o que de fato nunca fora seu: o amor da menina, a vida de um cachorro.

Pai e Filha

 O pai e a menina entraram no café de mãos dadas.  Eles se sentam e rapidamente a menina escorre pra debaixo da mesa. Tudo a diverte: A sujeira do chão, o pé acrílico da mesa, o sapato do pai. O mundo embaixo da mesa é outro. As costas do homem dóem, a menina não pára quieta.  Seus olhos grandes percorrem as outras mesas a procura de aventuras. Os olhos do pai buscavam em pernas femininas algum consolo. O homem sorvia seu café e a criança ali era o seu erro materializado. Coisa que já fora parte dele não podia prestar. A menina era um mistério cruel. Era pequenininha, o acidente, e olhava o mundo atenta, como se estivesse sorrindo. De repente, de tanta agitação de vida no seu peito, desequilibrou-se e caiu da cadeira. Na queda ainda bateu a cabecinha na quina da mesa.  O filetinho de sangue a fez chorar, o machucado mesmo não doía. Foi só o susto. E o pai limpou sua testa com os guardanapos de papel. Acabou o passeio. Garçon traz a conta, olha a menina com simpatia. Ela toda vermelhinha, os olhos ainda úmidos. O mundo não é lugar pra crianças. O pai e a menina iam sair do café de mãos dadas, mas ela libertou a sua mãozinha, saiu correndo pela calçada, livre como um passarinho. O pai a seguia de longe, sem saber ainda pra onde levaria a menina.


Desejo


A música que eu busco e não existe,
quente, seca, triste,
crianças se agitam como folhas,
a moça passa rindo e não me olha.

A música do meu coração. 
Canção vazia soando nas esquinas.
Canção exausta feita dos espaços que há na alma.

A música que resta sobre os canteiros.
A música que é meu nome e eu já não digo.  
A música que paira imóvel, depois do grande salto.
                                                                             
A música que eu quero e que me falta,
As lembranças que eu trago e formam (e deformam) o meu corpo
A música que tu e eu não esquecemos, que talvez seja uma alucinação.

E quando caminho solitário pela noite,
quando conto os anos que já tive e os que me faltam,
Lembro a música que escuto, mas não danço.
A música que separada em partes deixou de ser música.
A música que toca a mim, em mim, ao mundo inteiro.



São Paulo, 2011