O apartamento ficou vazio uns dois meses. Antes, estava ocupado por uma influencer muito famosa que, no início do isolamento social, entrava em casa unicamente para performar a sua live que se chamava “Em Casa” e depois saia novamente. Mas a influencer percebeu (e isso foi um constrangimento para ambos) que não podia andar seminua pela casa sem invadir a privacidade dos vizinhos (eu incluído) que lavavam as suas roupas nas áreas dos fundos de suas próprias casas cujas janelas davam, justamente, para a sua sala de estar. A influencer, então, se mudou.
 
Sempre causa surpresa quando a vida surge num lugar onde ela não havia. Foi com um susto que vi o apartamento até então vazio ocupado agora por muitos livros, decoração e uma moça sentada sobre uma mala. Ela parecia um quadro, tudo parecia etéreo. Não fosse o garotinho ruivo correndo e pulando no apartamento ao lado, como sempre estivera, eu ia achar que estava sonhando.
 
Então, aconteceu: ela olhou para mim. Eu estava com o cesto de roupa suja na mão. Não era como se eu quisesse capturar a sua alma. A outra moça tinha milhões de seguidores numa rede social e não podia ser vista pelo vizinho. Meu olhar era realidade demais para ela? Um homem solteiro, comum, lavando a própria roupa durante uma pandemia, existe um filtro para isso? Além do mais, eu sabia que a vida dela era uma mentira. Ou melhor, eu sabia que o trabalho dela era mentir.
 
A moça anônima que não se mostrava também não tinha o que esconder. É preciso conhecer um pouco da dor humana para sustentar o olhar de um estranho. A fama isola os famosos. Os subterrâneos, os mundos internos, a roupa suja, os fundos, nada disso se vê nas redes sociais ou no Olimpo. A moça anônima, com certeza, tinha um nome. E uma vida menos badalada, mas também interessante. Aliás, o que é uma vida interessante? É uma vida que interessa a muitos? Ou uma vida que interessa a quem a vive? Toda vida é interessante.
 
No fim das contas, a influencer estava tão refém da própria imagem que não podia sequer ter um corpo. Acho que isso é muito para se perder. Já a moça nova me olhava com algum desinteresse comprometido, como se olha para um anônimo. E lá estava eu, parado, com um cesto de roupa suja, com medo de morrer, pensando com quantos seguidores se constrói uma prisão.

Eu estou escrevendo esse texto porque eu não suporto mais tanta morte. Eu estou escrevendo esse texto porque eu estou viva e, se estou viva, não posso me calar. Eu estou escrevendo esse texto em nome dos que não podem mais escrever texto algum. Eu estou escrevendo esse texto porque me recuso ao grito mudo do quadro de Munch, não, as palavras hão de servir, vão me servir, é preciso contar com as palavras, descansar sobre elas, elas hão de dizer. As palavras são poucas, pouquíssimas, diante da grandeza da vida, mas elas são fortes, são firmes, eu posso me apoiar nelas. Eu estou escrevendo esse texto porque quero que saibam que em algum lugar alguém está dizendo não. Alguém está dizendo vida. Alguém está dizendo cura. Alguém está dizendo cultura. Alguém está dizendo educação. Alguém está lançando palavras como sementes e ninguém e nada atrasa a primavera.




Eu não tenho mais lágrimas, meus amigos, amores.
Eu não tenho mais amigos, minhas lágrimas, muitos se foram.
Eu não tenho mais amores, meus amigos, só lágrimas.
Eu só tenho amigos, amores.
Eu só tenho amor, meus amigos.


Tem algo ligeiramente constrangedor na insônia. O insone é aquela pessoa que chega numa festa de aniversário e não encontrando o aniversariante fica sem ter onde colocar o presente. No caso do insone, ele fica sem ter onde colocar o passado ou o futuro? O fato é que aquela questão (seja qual for) não deveria estar nas mãos dele àquela hora da noite.