Séculos


Se você é ator, ou atriz e esse texto te fala ao coração, ligue uma câmera, na frente de um espelho e diga: que saudade do palco. Porque se você é ator, ou atriz, deve estar com saudade do palco. O palco é o centro da vida. É onde ela acontece com mais força. E a saudade do palco é terrível, eu mesma já senti porque já fui atriz, mas ela morreu, a saudade, como morre o que a gente não atenta. Agora você diz: eu sou a melhor parte de uma sociedade. Posso dizer isso sem parecer arrogante porque essas palavras não são minhas, são de uma dramaturga que as escreveu. Mas sou eu que decido como vou dizer. E isso é muito.  E o meu trabalho é um dos mais importantes porque sou eu que represento como estamos vivendo. E isso é muito. Mas agora que não há palco, eu ligo uma câmera diante de um espelho (o espelho representa o público) e digo: o teatro está aqui porque o teatro é o meu corpo. Posso dizer isso sem parecer arrogante porque essas palavras sequer são minhas, são de uma dramaturga que as escreveu porque está precisando muito de teatro. E agora você pode dizer: se sou ator, ou atriz, eu represento a beleza porque o meu corpo está a serviço da arte. E posso dizer isso sem parecer arrogante porque todas palavras do mundo são minhas e eu as pronuncio de determinada forma que as lanço através dos séculos.  

 


Apagão


(Armando está lendo, Helena entra afobada)

- Armando, por quê a tigela de comida do gato estava do lado da planta?

- Não sei, Helena. Provavelmente, eu aguei o gato e alimentei a planta.

- O que está acontecendo, Armando?

- Eu estou confuso, Helena. Não aguento mais ficar preso em casa. Eu já li reli toda a minha coleção de Tesouros da Juventude.

- Me ajude a arrumar a casa.

- Não quero, Helena. Não quero gastar energia com isso.

- Prefere gastar se angustiando, né?

- Talvez! Eu tenho pensado muitas coisas...  Por exemplo, agora há pouco, eu estava pensando que não passamos de uma gigantesca colônia de bactérias. Todos nós.

- Ai, meu Deus, Gustavo.

- Você me chamou de Gustavo?  Você está me traindo, Helena?

- Não! É muito pior. Eu esqueci seu nome.

- Meu nome é Armando, Helena!

- Calma! Eu ando muito nervosa. Já são muitos dias trancados. Eu nem sei mais que dia é hoje.

- Nem eu.

- Deu um apagão.

- Eu sei como é.  Calma. Vem cá. Me abraça.

- Essa pandemia expôs a nossa fragilidade, Armando. A gente não sabe o dia de amanhã.

- Eu te amo.

- Amar é enlouquecer juntos.

- Que bonito isso.

(A luz se apaga)

- O que foi isso?

- Um apagão.

- Armando, você lembrou de  pagar a conta de luz?

- ...

 

Não faz Sentido


No meu país, começamos o isolamento social em 16 de abril de 2020. Já estamos em 14 de junho de 2021 e ainda não saímos. A maioria dos países estabeleceu um lockdown e conseguiu frear o vírus, mas por aqui os políticos não quiseram comprar a briga com os empresários e nós estamos em quarentena há mais de um ano. Vai ser necessário que 100 milhões de pessoas peguem o vírus para que a gente consiga a imunidade de rebanho. Ontem, 90 milhões de pessoas estavam contaminadas. Pra frente, Brasil.

Eu não saio de casa há oito meses. Ninguém conta mais. As noites se derramam e se misturam com os dias. Nada faz sentido. Eu tenho conversado com alguns amigos que dizem que nada fazia sentido aqui mesmo antes do vírus. Todo mundo já acabou com a Covid, menos a gente. Mas nós também fomos os últimos e acabar com a escravidão.  Isso aqui está muito pessimista, eu sei. Mas faço lives. I’m alive. Ainda.

No início, as pessoas diziam: vai passar. Mas daí, nos demos conta que a nossa vida também estava passando. Isso não ajuda. É preciso tomar providências. O presidente pegou a doença no fim de 2020. Ele fez um churrasco que vinha prometendo desde maio e foi contaminado. Quando recebeu o resultado positivo saiu correndo pelas ruas cuspindo nas pessoas e a polícia teve permissão para atirar. O vice assumiu em seguida, mas não ficou muito tempo no cargo.

Não sei quem é o presidente atual. Há muito tempo não falo com ninguém. Esse país é muito esquisito. Esse país me deixa com falta de ar. Esse país comprova que ignorância mata. Vai passar?

 

 


Saudade

Eles já não se viam há seis meses. Mas aí, veio a pandemia de Covid, o isolamento social, e ele se pegou pensando nela. Ele tinha a desculpa perfeita para uma reaproximação, o mundo estava acabando, queria saber como ela estava. Soou educado. Ela não achou. Assim que reconheceu a voz dele do outro lado da linha, desligou. Mas e se ele estivesse doente? Ligou novamente. Iniciaram um papo. Combinaram de falar de novo amanhã.

Muita coisa havia mudado nos seis meses em que estiveram afastados. Ela mudou de emprego, ele adotou um cachorro. O peixe dela morreu. Ela tinha um peixe? Tinha, mas comprou depois que já tinham terminado.

- Qual era o nome do peixe?

- Saudade.

O nome do peixe não era saudade. Era Cirilo. Mas ela já tinha tomado algumas taças de vinho e achou que ficaria bonito dizer aquela palavra. Ele entendeu o recado. Na ligação seguinte, foi direto ao ponto:

 - Como você está vestida?

A partir daí muitas palavras quentes se derramaram. Por muitas horas. Por muitos dias. E vieram as juras de amor. Nada será como antes.

Acabou a pandemia. Combinaram de se encontrar. Foram muito felizes por duas semanas. Até que, exatamente como da última vez, na mesma sorveteria (ah, essas coisas se repetem) ele fez um comentário sobre um barulho que ela fazia quando tomava sorvete. O mesmo comentário da briga anterior. Ele nem lembrava. Ela não admitia, não se fala esse tipo de coisa. Ele não tem respeito pelos outros. Ela não tem humor. É uma chata. É um grosseiro. É insuportável. Vamos ficar por aqui.

- Logo agora que podemos nos ver...

- Pois é. Romeu e Julieta já nos mostraram a força de um amor proibido.

Ele era professor de literatura inglesa. Ela sorriu. Talvez se tornassem amigos. Na próxima pandemia.