Eles
se conheceram na farmácia. Um desencontro. Ele tentava comprar cloroquina, um
medicamento perigoso, porque havia visto na Tv que a substância, talvez,
eliminasse o vírus da Covid-19. Quem poderá ser julgado por ter medo de morrer?
Mas, ela a seu lado no balcão da farmácia, julgou:
-
Pra que você quer esse remédio?
Ele
pensou em responder “não te interessa”, mas quis ser simpático:
-
Eu vi na TV...
Ela
interrompeu.
-
Tem gente que precisa desse remédio de verdade, sabia?
Ora,
ele também precisava. Ou podia precisar. Vai saber.
Mas
ela continuou:
-
Esse remédio tem um monte de efeito colateral. Eu sei porque a minha tia usa.
Ninguém toma cloroquina de forma preventiva. Só um imbecil.
Só
um imbecil. Essa foi a frase que ficou ecoando na cabeça dele, enquanto ela já
tinha virado as costas e se afastado.
O
eco só foi interrompido pela voz do atendente da farmácia: não tem mais
cloroquina.
Ele
voltou para casa e deu continuidade a seu novo esporte: observar as casas dos
vizinhos. De repente, no prédio em frente, a silhueta de uma moça lhe chamou a
atenção. Bonita, de cabelos presos, ela falava ao telefone. Ele não tinha
reparado nela antes. Agora não conseguia parar de olhar.
Lentamente,
começou a notar que ela parecia muito com a moça da farmácia, a que o havia
chamado de imbecil. Era ela. Que coincidência. Tão improvável como a pandemia.
Começou
a sentir falta de ar, calafrios. Era o amor ou o vírus? Se apaixonar na quarentena,
só um imbecil faria isso. Mas se não agora, então quando?
Passou
a noite em claro. Pensando. Mas dessa vez, não em catástrofes, mas no corpo
dela. Próximo e distante. Será que ela estava respeitando o isolamento social?
Estava na farmácia, um lugar contaminadíssimo. Será que ela ia aceita-lo,
depois do infeliz episódio com a cloroquina? De qualquer forma, já não pensava na morte
iminente, mas na vida. Estava curado. Pelo menos do medo.
No
dia seguinte, logo pela manhã, ela tomava café, encostada no balcão da cozinha.
Ele, sem inibições, gritou. Seu gritou atravessou o ar mais ou menos silencioso
da manhã:
-
Oi!
Ela
ouviu. Buscou com os olhos a voz. Seus olhos se encontraram, na distância. Ela
tomou um susto. Se aproximou do peitoril da janela.
-
Se lembra de mim?
Um
outro vizinho gritou:
-
Silêncio!
Ela
forçou os olhos, ele resolveu ajudar:
-
O imbecil da cloroquina!
Ela
demorou, mas lembrou. Talvez aquela não fosse a melhor forma de se apresentar. Ela
sorriu, sem graça, e fechou as cortinas.
Na
manhã anterior, ela havia ido até a farmácia para comprar um cosmético
absolutamente desnecessário. Mas quem pode julgar as necessidades alheias? A
jornada humana se compõe nos detalhes. Um bom shampoo pode trazer segurança.
E
na farmácia, ela se deparou com um completo imbecil.
Logo
em seguida, o namorado ligou e terminou com ela, por telefone. Ela estava
sozinha, insegura. O shampoo novo não atenuou nada, algumas coisas exigem
outras respostas.
E
agora, o imbecil, estava do outro lado da rua, eram vizinhos. E quem sabe o que
pode sair daí? Ela afastou a cortina e deu uma olhada, ele ainda estava lá. Que
improvável. Esperava alguma coisa. Ela também esperava alguma coisa. Algo lhe
faltava. Ela abriu a janela, encheu o peito de ar e gritou:
-
Oi!
(Esse
conto acaba aqui porque a partir de agora são infinitas as possibilidades, todo
fim é brusco e o futuro, realmente, não sabemos).
Nenhum comentário:
Postar um comentário